TRAMELAS
Quando garoto, depois que
nos mudamos para a cidade, de vez em quando eu ia com meus pais visitar alguns
tios e amigos que moravam em uma usina de açúcar aqui da região.
Era a usina para onde
meus pais se mudaram logo que eu nasci. Portanto, foi lá que eu passei os meus
primeiros anos cujas lembranças passeiam pela minha memória um pouco desconexas
às vezes e em outras, bem vívidas como neste momento em que aqui as descrevo.
Lembro-me das casas
branquinhas que ficavam dispostas de frente para uma imensa plantação de
eucaliptos de onde no final da tarde, exalava um perfume tão suave que ainda
hoje sou capaz de senti-lo.
Chamávamos aquele lugar
de Colônia. Ali moravam as pessoas que, como os meus pais, trabalhavam na
usina. Gente que trabalhava no plantio e corte da cana, na lida com o fabrico
do açúcar, no transporte, no escritório, no armazém, enfim, em todas as
atividades necessárias à produção do “ouro branco”. Durante os seis anos em que
lá moramos, minha mãe costurava para ajudar no orçamento da casa, enquanto meu
pai trabalhava na gráfica e, juntamente com seu compadre, dirigia o time de
futebol e cuidava da sede social da usina. Talvez por isso eles fossem tão
populares e queridos, mesmo depois de se mudarem de lá.
Pensando nas casas da
colônia, vêm à minha memória os galinheiros onde eu brincava, a horta que havia
no fundo de casa, a leveza da água tirada da cisterna, o cheiro do pão caseiro
feito no fogão de lenha. Sabores da infância. Lembro-me também das portas e
janelas de casa. Nelas não havia fechaduras. Só era possível trancá-las usando
uma trava de madeira chamada tramela que era posta de uma extremidade a outra
da porta ou da janela, pelo lado de dentro.
Ao lembrar-me das tramelas
que existiam na casa de meus pais, fico pensando nas tramelas que nós
inventamos em nossos corações. Trancamo-nos por dentro em relação às outras
pessoas. O saber daqueles com quem nos relacionamos, não nos interessa.
Assumimos uma posição egocêntrica na qual não se apresenta nenhum esforço no
sentido de ampliar a compreensão do outro. Só a nossa fala é que vale. Só o
nosso saber é portador da verdade civilizatória.
Agimos, às vezes
inconscientemente, tal qual agiram os colonizadores que se negaram a
compreender os nativos habitantes dos territórios conquistados e os dizimaram
sem piedade. Quanto saber, quanta cultura, quanta ciência desapareceu, sem que
outros povos sequer tomassem conhecimento de sua existência. Tudo porque
simplesmente negou-se o compreender do outro. Compreender o outro, é
compreender-se a si mesmo refletido no seu diferente. No entanto, nos negamos a
compreender o outro e alimentamos desse modo, a intolerância.
Muito me preocupa que as
escolas têm se ocupado tanto em educar para compreender as técnicas de
comunicação, para compreender a álgebra, a ciência ou os fatos da história, mas
não têm se dedicado, de um modo generalizado, a educar para a compreensão entre
os seres humanos na prática, embora esta falácia conste da maioria dos Projetos
Políticos Pedagógicos. Enquanto isso, milhões de programas são elaborados para
tentar diminuir a violência e o desrespeito que dominam o universo juvenil, mas
sempre, de um modo geral, a partir da ótica dos que nunca vivenciaram as
situações vividas pela maior parte dos jovens aos quais se destinam estes tais
programas e que por isso, acabam sendo ineficazes.
O educador Edgar Morin
elenca o ensino da compreensão humana como um dos sete saberes necessários à
educação do futuro.
A educação para a
compreensão não é tarefa fácil. Exige empatia, ver o mundo com os olhos do
outro, sentir como o outro, colocar-se na pele do outro. Exige compreender o
ódio e o desrespeito, exige compreender como se dá a incompreensão no outro.
Educar para a compreensão é despir-se de nosso eu antes de proceder a acusações
e julgamentos. Só assim poderemos argumentar com solidez e autoridade, sobre
cultura de valores.
Quanto aos conteúdos
operacionais que tanto preocupam muitos educadores que entendem a educação como
o ato de passar os conteúdos acadêmicos de suas especialidades e que se queixam
muitas vezes do desinteresse dos alunos em absorvê-los, tenho plena convicção
que ao trabalhar a compreensão humana, o eu no outro e com o outro, este
aprendizado se encarregará, certamente, de destrancar as tramelas que por
ventura impeçam o entendimento de outros saberes.
Arnaldo Martinez de
Bacco Junior
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